É normal os cães comerem folhas e frutas?

Para quem tem cães em casa, ver eles mastigando vegetais é algo corriqueiro, e este processo pode ter diferentes vertentes que explicam tal situação.

Filhote cheirando o gramado no quintal residencial.

Primeiro de tudo, ressalta-se que os animais pertencentes a família Canidae (dos cães, raposas, lobos, chacais e coiotes), são preferencialmente onívoros, isto é, comem de tudo. E quando olhamos para a literatura, muitas vezes entendemos que esses animais são mais carnívoros que qualquer outra coisa, mas eles também vão ingerir frutos, folhas, sementes, dentre outras coisas (sem esquecer de falar sobre o leite, todos mamíferos).

Mas, o que levaria meu ‘doguinho’ a comer folha no quintal, ou frutos nas árvores? Referente as folhas, pode ser como método de tratamento natural para cólicas ou processo digestivo, estresse ou apenas para experimentar algo novo, e sobre as frutas, eles gostam mesmo de comê-las.

Dado a resposta, caso você deseja continuar lendo e conhecendo sobre estas curiosidades, vou tratar de três áreas possíveis sobre o consumo de plantas e frutos, comparando nossos pets e os animais selvagens, bora continuar?

  Consumo de plantas com destinação medicinal:

Os cães possuem olfato aguçado para reconhecer as plantas.

Numa breve leitura na matéria desenvolvida por Martins (2019), temos um interessante relato do que pode estar acontecendo com o cão-doméstico (Canis lupus familiaris Linnaeus, 1758) ao comer grama: As plantas são consideradas como ervas medicinais, e quando o pet está com dor de estomago, cólica ou com complicações no intestino, ele utilizará este mecanismo como tratamento (lembramos aqui, que os gatos também utilizam desta prática medicamentosa, só que os felinos são apenas carnívoros (família Felidae)).

No ambiente selvagem, podemos ver em estudos diversos que este hábito se repede nos demais canídeos. Na coleta de fezes de duas espécies (cachorro-do-mato (Cerdocyon thous Linnaneus, 1766) e lobo-guará (Chrysocyon brachyurus Illiger, 1815)), a fim de realizar estudo sobre sua dieta, De Faria et al. (2014) obtiveram resultados interessantes, dentre eles, a presença de resquícios de plantas da família das Poaceae (família das gramas), todavia, os autores citaram que esses vegetais não possuem valores nutricionais ao seu consumo por esses animais, mas têm como potencial o auxílio nos processos digestivos.

Outra pesquisa focada apenas no lobo-guará (C. Brachyurus), os dados se assemelharam ao observado pelo estudo anterior, onde do total de consumo vegetal, 11% era Poaceae (graminhas), sendo citado também a presença de folhas (sem identificação). Neste estudo se repete a observação de se tratar de consumo voltado a melhora no trato digestório e uso medicinal (Emmert 2012).

As espécies da família Poaceae são comumente vistas nos artigos.

Pausa para reflexão: eu como biólogo com foco na área da botânica, fico incomodado ao ver esses artigos, pois, será mesmo que as ‘graminhas’ observadas são Poaceae apenas? Podem haver confusões nessas identificações. Isto é, as plantas podem ser facilmente confundidas, a exemplo, será que eles não viram estruturas de Cyperaceae? Além disso, fala-se de fragmentos vegetais (mas não dizem se é folha, parte do fruto ou semente), e esta informação pode dar diferentes viés de observações!

Para concluir este tópico, vamos passear um pouco no artigo desenvolvido por Sueda, Hart e Cliff (2008), eles conversaram com proprietários de cães, tanto na clínica quanto em formulários online e relataram que maior parte dos proprietários observaram o consumo dos cães em questão de vegetais, e o mais corriqueiro observado foi o consumo de grama do quintal. Nesse mesmo estudo, os pesquisadores apresentaram como entendimento a não necessidade de patologia do animal para a ingestão de plantas, mas algo natural … porém, como sempre citamos em nossos artigos e publicações, novos estudos são necessários para uma melhor compreensão dos dados e fatos.

  Os ‘papa frutas’ animados:

Imagem ilustrativa do C. thous desenvolvida para o post.

Se você possui jabuticabeira ou butiazeiro, já deve ter visto o ‘doguinho batendo um rango’, mastigando freneticamente as frutas dessas plantas. E os paladares 'deles' vão muito além, já peguei minha cachorra comendo manga, laranja, maçã … e isso é normal, pois como já citamos, os cães são onívoros, como nós humanos, e aproveitar os alimentos ricos ao nosso redor, é algo natural.

Isso também se vê no mundo selvagem, e estudos vem explorando esses acontecimentos para entender melhor as interações ecológicas. Em 2017, Dos Santos desenvolveu projeto de pesquisa avaliando o consumo dos animais em um parque catarinense, de frutos de uma espécies ameaçada, o butiá (Butia catarinensis Noblick & Lorenzi). Nesse estudo, foi observado com imagem de câmeras fotográficas (câmera trap) os registros de animais consumindo e dispersando as sementes do butiá (B. Catarinensis), e para se ter uma ideia, o cachorro-do-mato (C. Thous) foi observado 137 vezes, comparando com a ave aracuã (Ortalis squamata (Lesson, 1829)), essa foi registrada 135 vezes.

Butiazeiros são baixos, o que facilita o acesso
aos frutos (na foto ainda verde)

Pedó (2002) observou menor incidência de sementes nas fezes do cachorro-do-mato (C. Thous), todavia ele ressaltou que poderia ‘haver maior competição com outras espécies de fauna’. Além disso, deixa-se neste artigo questionamentos sobre o tipo vegetal para a semente, estando entre coqueiro-jerivá (Syagrus romanzoffiana (Cham) Glassman.) ou butiazeiro (Butia capitata (Mart.) Becc.).

Tanto De Faria et al. (2014) quanto Emmert (2012), observaram nas fezes do lobo-guará (C. Brachyurus) a presença de sementes, mas em especial, temos o vestígio da fruta-do-lobo (Solanum lycocarpum A.St.-Hil.). Agregamos aqui também, uma informação apresentada por De Farias et al. (2014), que por não mastigar muito os alimentos e não ter adaptações para digestão de celulose, favorece a saída da semente com maiores chances de brotamento, os tornando assim importantes dispersores (referente a família dos canídeos). E falando em dispersão, convido vocês a assistirem este vídeo especial Sou Amigo do Lobo.

Pausa para reflexão: os canídeos como observamos até aqui, são importantes predadores, consumindo animais menores e insetos, como também têm potencial de dispersão de sementes… e quando a comida não cai bem, são exímios curandeiros, consumindo vegetais para auxiliar na digestão.

Os canídeos se alimentam de diferentes espécies de plantas,
e na Mata Atlântica observa-se bastante consumo
de espécies da família Arecaceae (das plameiras).

 Cuidados com os animais jovens e plantas toxicas:

Já reparou que em algumas vezes, nossos pets comem os ‘matinhos’ e depois regurgitam (vomitam)? Pode, quando ocorre de modo disperso e ou as vezes muito raramente, ser um processo normal (Sueda, Hart e Cliff 2008), mas se isso se repete, o alerta vermelho deve ser acendido.

Martins (2019) relata que algumas infecções que levam a esses estresses ao animal, poderiam ser evitados com vacinação, ou mesmo com dieta balanceada e cuidados veterinários. Deste modo, sempre que houver algo suspeito, leve ao profissional médico veterinário, para um melhor tratamento.

Porém, levantamos o seguinte questionamento: será que os animais sempre acertam na seleção das plantas? Com o olfato super aguçado, e instinto animal, eles raramente erram, mas quando tratamos de filhotes, isso pode mudar e muito.

Conforme o tempo, eles também aprendem a selecionar o que consumir.

Na infância, o que mais se busca é novos saberes e bastante mordidas em tudo o que aparecer ao redor (principalmente no momento que nascem os dentes). E sair mordendo tudo o que vem pela frente, pode gerar danos, como morder uma planta tóxica. Para evitar acidentes, precisamos limitar o acesso dos animais jovens a esses vegetais, e se seu filhote der uma abocanhada indesejada, leve ao veterinário imediatamente. Em casos de alergias graves, pode-se haver o fechamento da traqueia e a queda na oxigenação no corpo.

 Concluindo:

Sempre queremos o bem dos nossos pets, mas como nossos amiguinhos canídeos selvagens, nossos cães também possuem características naturais de consumir plantas e frutos. Busque sempre olhar onde eles estão colocando o focinho, pois infelizmente ainda há pessoas que usam agroquímicos para ‘limpar terreno’, o que pode gerar intoxicação.

Em estudo com a família dos cães selvagens, por exemplo, vemos corriqueiramente que muitos morrem envenenados por produtos químicos em lavouras, mas esse assunto é para uma outra hora, e em outro canal (pois nosso foco aqui é falar mais sobre plantas ;).

É importante observa o que eles consomem,
mas vamos confiar no instinto deles.

Por detrás dos bastidores, conseguimos obter muitas informações que, as vezes, ficam desapercebida nos artigos, mas a titulo de curiosidades: muitas palmeiras e butiazeiros nascem em cocô de cachorro-do-mato; a fruta-do-lobo é da mesma família do tomate, e ela leva este nome por o animal amar abocanhar este fruto; as pesquisas são feitas por seres humanos, portando, sempre haverá discordância e refutação, sendo assim, sempre haverá novos questionamentos, afinal, os assuntos nunca se acabam, apenas se reconstroem.

Espero que tenham gostado deste material, foi feito com muito carinho. 

Até breve :D

  Referências bibliográficas:

De Faria GMM, Rosa CA, Puertas F, Passamani M. 2014. Dieta dos canídeos Cerdocyon thous e Chrysocyon brachyurus em uma região de mata atlântica no sudeste do Brasil. XXIII Congresso de pós-graduação da UFLA (Lavras). Link do artigo.

Dos Santos NN. 2017. Estudo da Dispersão do Butia catarinensis Noblick & Lorenzi no Parque Estadual da Serra do Tabuleiro, Palhoça-SC. Dissertação para o curso de Ciências Biológicas Bacharel, Universidade Federal de Santa Catarina. Link da Dissertação.

Emmert L. 2012. Dieta e Uso do Habitat pelo Lobo-guará (Chrysocyon brachyurus, Illiger, 1815) na Floresta Nacional de Brasília [Distrito Federal]. Dissertação de Mestrado – Universidade de Brasília. Faculdade de Tecnologia. Departamento de Engenharia Florestal. Link da monografia.

Maykon M. Martins MM. 2019. Por que o cachorro come grama ou plantas? John's Farms. Link do post.

Pedó E. 2002. Dieta do graxaim-do-mato, Cerdocyon thous (Carnivora, Canidae), na Reserva Biológica do Lami, sul do Brasil. Dissertação para o curso de Ciências Biológicas Bacharel. Curso de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Link da dissertação.

Sueda KLC, Hart BL, Cliff KD. 2008. Characterisation of plant eating in dogs. Applied Animal Behaviour Science. Doi: https://doi.org/10.1016/j.applanim.2007.05.018.